Dedé é a mulher que participou da edificação da Produção Cultural no Brasil e, por isso, tem muita história para contar. Faz tanto tempo que ela começou que a nova geração nem imagina como era duro: “Na época a gente usava papel carbono para escrever 3 releases por vez. Assim só precisávamos digitar 10 vezes”, ironiza. Com criatividade, se destacou no cenário cultural de Porto Alegre: “Eu fazia umas colagens artísticas nos releases e entregava nos jornais. Com o tempo, virou uma marca registrada... As pessoas viam o release enfeitado e já sabiam quem estava produzindo.”
Esse foi o início de uma carreira que passaria por uma pós-graduação em produção cultural pela Sorbonne, Universidade de Paris, onde pôde comparar o modus operandi da produção cultural francesa e brasileira. No seu retorno ao Brasil, caminhou pela produção na Unisinos, dirigiu a Usina do Gasômetro e coordenou o Santander Cultural. Contribuiu com as carreiras de Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro, Arthur de Faria e Quartchêto, entre outros. Hoje Dedé é co fundadora da Liga Produções, empresa especializada em projetos e políticas culturais - presta assessoria para artistas e empresas. Essa entrevista é sobre a profissão que faz a cultura acontecer.
CIA: Para começar, o que é a Produção Cultural, em termos simples?
é um conjunto de estratégias, técnicas e saberes para fazer com que o produto cultural de um artista chegue ao público cumprindo totalmente sua função. Se inicia no planejamento e vai até a finalização, com prestação de contas, relatórios e o que mais for necessário.
CIA: E quais são os desafios éticos da Gestão e Produção Cultural? O que é necessário para produzir cultura com qualidade?
Qualquer pessoa pode fazer produção cultural, o que torna o mercado vulnerável à "produtores" sem formação ou sem escrúpulos. O bom produtor lida diariamente com clientes e fornecedores que já passaram por situações no mínimo embaraçosas. Merecer confiança é o maior desafio ético. Produzir cultura com qualidade depende dos dois lados, pois o produto também precisa ter. Mas o conceito de qualidade é bastante amplo... Igual, o que o produtor precisa é ter muito conhecimento de seu trabalho e colocar em prática com criatividade e transparência.
CIA: De 77 pra cá muita coisa mudou na sua profissão. Quais as principais transformações?
Basicamente três coisas: o público ampliou, os mecanismos de incentivo criaram mercado de trabalho e os avanços da tecnologia (principalmente internet) mudaram radicalmente a forma de trabalhar.
CIA: No que ainda precisamos avançar em termos de Política Cultural no país?
Estamos em um momento de crise brutal e acho que as políticas culturais que estavam sendo implantadas correm riscos de retrocesso. Apenas retomar seu curso de aperfeiçoamento já seria muito bom. Os governantes precisam se conscientizar de que a cultura é uma das armas mais efetivas contra a violência e não tratar apenas como lazer para ricos ou manipulação para as massas.
CIA: Temos presenciado, desde 2017, uma onda de conservadorismo alimentando a censura às obras de arte, isso em cidades cosmopolitas como Brasília, São Paulo, Porto Alegre, Rio, entre outras. Quais as consequências da atual situação política do Brasil para a livre expressão artística e sua multiplicidade?
A censura e o conservadorismo já estão fazendo com que muitos artistas e pensadores deixem o país, quando podem. O dano causado pelo achatamento das expressões artísticas vai aparecer paulatinamente em todas as áreas, da pesquisa científica até a indústria. Tanto os governos totalitários como a presença forte de uma ou outra religião no poder utilizam esses mecanismos para cercear o pensamento e manter as pessoas "sob controle". A história nos mostra o que vem depois, inexoravelmente...
CIA: Você diz que o teatro é um trabalho que não se paga por causa de sua irreprodutibilidade, o que me parece um critério bastante objetivo. Isso me fez pensar sobre como a arte pode ser monetarizada, porque e quais os limites desse valor subjetivo que atribuímos ao trabalho artístico. Você pode comentar isso?
De fato, uma experiência de fruição artística não pode ser valorada em termos financeiros. O que fazemos é valorar o tempo de trabalho e os custos de um determinado produto artístico até que ele chegue ao ponto de se tornar uma demanda do público consumidor. Depois disso, pode seguir as leis do mercado como qualquer outro produto.
CIA: Você tem uma trajetória de gestão de importantes espaços culturais e produção de artistas. Qual de seus trabalhos você considera a menina dos olhos? Porque?
A Liga é meu (nosso) melhor projeto. Tenho grande orgulho de, depois e tantas experiências, criar uma empresa baseada no prazer absoluto de fazer produção. Quem trabalha na Liga é apaixonado, idealista e comprometido, com o mínimo de hierarquia e regras e o máximo de diálogo e remuneração possíveis. Não teria como escolher um projeto feito na Liga. São como filhos, todos diferentes e deliciosos.
CIA: Como feminista, você pode comentar os desafios do meio cultural para a atuação feminina?
Temos uma "bolha" onde convivemos com artistas e humanistas. Percebo (quando olho pra fora da bolha) que somos privilegiados por conviver com um baixo teor de preconceitos, comparados a outros setores da sociedade. Particularmente sofri raríssimas situações de preconceito por ser mulher e quase sempre me senti respeitada profissionalmente. Quando percebo alguma situação, converso, digo como me sinto e as coisas se resolvem. Como dramaturga também consigo me posicionar. A arte costuma quebrar os limites de usos e costumes culturais e me sinto confortável nesse papel. Talvez não seja assim para todas as mulheres. Ainda tem nichos onde os homens detêm o poder e as regras, como na música regional ou na erudita, mas não na produção. Nos meus cursos invariavelmente tem mais alunas que alunos.
CIA: Por falar nisso, porque você separa a produtora da artista?
São trabalhos muito diferentes, com suas especificidades. Não produzo meus trabalhos de artista. Se houver um produtor de fora, ele terá uma visão diferente, que não está contaminada pela importância que dou ao que crio. Gosto de me concentrar em uma coisa de cada vez, me colocando inteiramente no papel. Tanto é que precisei sair da Liga para fazer minha primeira exposição e viver intensamente o "outro lado"! Não é assim com todo mundo e tem pessoas que produzem bem seu trabalho de arte, mas algo me diz que produziriam melhor se tivessem tempo para pesquisar, estudar e por em prática apenas uma das coisas.
Por Gerli Mendes, março de 2018.
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