http://www.nonada.com.br/2016/11/movimento-de-palhacaria-esta-vivo-em-porto-alegre/
Por Mariana Pires, jornalista e aluna do curso Construindo seu Clown
A figura do palhaço é milenar. Ele está no picadeiro, na rua, no teatro, cinema, televisão, Internet e até mesmo nos hospitais. Mas onde estão os palhaços em Porto Alegre? A capital gaúcha tem um leque de artistas que atuam com a palhaçaria, no entanto, não são tão conhecidos do público.
Tuta Camargo, o palhaço Serragem, da dupla Pinguinho e Serragem, lembra que o palhaço é um transgressor natural, pois a partir do momento em que a pessoa entra em contato com a palhaçaria, passa a ver a vida com mais poesia. Rafael de Moura, o palhaço Pinguinho, faz dupla com Tuta e completa “quando tu começas a trabalhar como palhaço, tu começa a parar de achar como é a vida e começa a vivê-la de fato”.
Mauro Bruzza e Mariana Ferreira, da Cia1Péde2, veem a palhaçaria como uma lente de aumento de ti mesmo e o palhaço como um provocador de emoções e um comunicador. Ele existe na prática – na sua relação com o público. Tem que estar vivo em cena e perceber tudo que acontece na hora em que está apresentando. “O palhaço tem que ter o botão do foda-se. Se fez uma coisa e não deu certo: foda-se e segue adiante”, brinca Mauro.
Também palhaça de Porto Alegre, Genifer Gerhardt, a Palitolina, percebe que para ser palhaça tem que estar disposta a viver o agora com plenitude e aflorar o que há de profundo dentro de si. “Com o palhaço, conseguimos acessar lugares que nem sempre acessamos no dia a dia devido à imposição de costumes e da moral. Enxergar isso e rir disso é ser palhaça”. Por que não ser todo mundo ridículo?”, provoca a artista.
Mas, afinal…o palhaço o que é?
A origem da palavra palhaço vem do italiano paglia, que em português quer dizer palha. Era de palha o figurino dos palhaços na Roma da Idade Média. Nesta época, eles eram os artistas que saíam a viajar pelas cidades apresentando números de variedades. Contavam histórias, cantavam baladas, eram mímicos, equilibristas, acrobatas, malabaristas. Ficaram conhecidos como bobos porque se faziam de tolos para provocar o riso dos espectadores. Entretanto, eram os únicos que podiam caçoar dos reis e da aristocracia sem sofrer represálias.
Apesar de existirem registros de palhaços desde a civilização egípcia, e também na Índia, China e Malásia, o palhaço moderno, conhecido no Ocidente, surgiu no Século XVI, com o movimento de “Commedia Dell’arte” ou Comédia da Arte. Daí nasceu os palhaços clássicos Arlequim, Pierrot, Pantaleão, Polichinelo e Grimaldi. Na mesma época, surgiu a expressão Clown, que também é associada ao palhaço. O Clown está ligado ao termo clod, que em inglês significa caipira, rústico. Os clowns eram a representação cômica do camponês que saía da zona rural para a cidade. Normalmente, os palhaços eram artistas que apresentavam nas ruas e nos circos.
Os primeiros circos surgiram em meados do século XVIII, criados por Philip Astley, em Paris (França), com apresentações de cavalos. Com o passar do tempo, mais atrações foram sendo incluídas. Surge então o palhaço “Branco”, vestido ricamente com lantejoulas e gorro pontiagudo, cara branca e pouca maquiagem, representa a autoridade; o palhaço “Augusto”, tonto, desajeitado e extravagante, visto como um tolo; o palhaço “Toni”, que é tipo um quebra-galho nos circos, o Trump (vagabundo) e o palhaço “Excêntrico”, arquétipos esses de palhaços que iam colaborando para que a gargalhada corresse solta no picadeiro.
Tanto o palhaço, como o clown, são parte na arte da palhaçaria. Com o tempo, o termo clown foi ganhando outros espaços além das ruas e dos circos e se inseriu com maior facilidade nas universidades, pesquisas, teatros e outras linguagens. Independente da nomenclatura, tanto o palhaço como o clown estão associados a alguns traços psicológicos marcantes, como ingenuidade, loucura, erro, estranhamento, vícios, vagabundagem, imbecilidade, extravagância, entre outros criticados pela ética e moral da sociedade, mas que, quando ditos com humor passam a ser aceitos.
“O palhaço é o bem e o mau, querido, doce, amargo. A essência humana que cada um tem. Ele brinca, pode ser quem ele é, com um pouco mais de exagero”, explica Heinz Limaverde, palhaço da Cia Rústica de Teatro. Melissa Dornelles, a palhaça Roliça, diz que o palhaço não é um personagem e sim uma dilatação da sua própria corporeidade e alma.
Lugar de palhaço
O palhaço funciona mais nas periferias da cidade do que no centro, segundo Tuta Camargo. “Aqui no Sul, temos uma tentativa de ser europeu, um “ranço” de classe mesmo, que afasta os palhaços do movimento artístico”, ressalta o artista, que também é historiador. Ainda assim, o Parque da Redenção é um dos melhores lugares de se trabalhar no mundo como artista de rua, segundo o palhaço Mauro Bruzza, também conhecido pelo trabalho como Homem Banda.
Para Lia Motta, a palhaça Marmota, em Porto Alegre o palhaço infantil e de festivais tem público certo, mas ainda resiste-se ao espetáculo de palhaço(a) adulto(a). Ela lembra que no final dos anos 80 e início dos anos 90, a palhaçaria esteve forte na cidade. Depois, nos anos 2000, Porto Alegre entrou em uma fase de teatro experimental e contemporâneo e passou muito tempo vivendo isso. Agora, aos poucos, novamente o palhaço e a palhaça estão ganhando força.
Heinz atua desde os 15 anos com circo e teatro em Porto Alegre e diz que aprendeu o ofício ainda criança, observando as apresentações de circos no Ceará, seu estado de origem, e em festivais de palhaços. Para ele, a palhaçaria em Porto Alegre é bem representada, conduzida por pessoas competentes e abertas a ensinar através de oficinas. Ele diz que em outras cidades por onde passou os palhaços não são tão abertos assim.
O palhaço pode ocupar distintos lugares na sociedade. Tuta Camargo e Rafael de Moura formam a dupla Pinguinho e Serragem e estão mais familiarizados com a linguagem circense. Os dois integram a equipe do Circo Girassol, onde apresentam como “partners” (parceiros) os espetáculos ‘O Hipnotizador de Jacarés’ e ‘Chocolaj’. Também criaram o espetáculo independente ‘Assobia e Chupa Cana’, que pode ser feito na rua, teatro ou circo.
No Circo Girassol, eles pesquisam o palhaço brasileiro e as “gags” (piadas tradicionais e universais dos palhaços) no Núcleo de Pesquisas da Arte da Palhaçaria CLUP – Clube de Palhaços. Ambos acreditam que o poder de transgressão no circo é mais potente. “O palhaço de circo tem que montar lona, trabalhar e só depois apresentar. é mais braçal. Ele não tem obrigação com nenhum ideal intelectual e por isso não tem papas na língua. Acredito que ele é mais popular e para o povo do que o palhaço do teatro”, defende Rafael.
Eles dizem que intelectualização, estudos e teorias sobre ser palhaço não existem no circo. “No picadeiro, o palhaço não intelectualiza o humor, ele vive, porque geralmente aprende de tanto olhar seu pai ou avô fazer. é uma tradição familiar”, explica Tuta.
Por trabalhar em dupla, Rafael e Tuta exercem muito a alternância de papeis e o jogo de cena, onde um serve de escada para o outro. Ou seja, quando um é Branco, o outro assume o papel do Augusto, e vice-versa. Para Tuta, é importante se divertir e ter o tempo cômico, com pausas entre uma ação e outra. é jogo e sentimento. “Quando a piada acontece no tempo certo, a risada é garantida”, afirma. Rafael diz que o maior desafio é manter a sintonia com a dupla e ainda estar em harmonia com o público.
Outro filho do Circo Girassol é Heinz Limaverde. Ele integrou a primeira montagem do ‘Hipnotizador de Jacarés’, em 2006. De lá para cá, já viajou muito pelo Brasil como o palhaço Dureza e o palhaço Azia, trazendo a realidade dos palhaços mais pobres do interior, sem lona, com um jeito meio jeca de ser. No final do ano passado, apresentou pela primeira vez o palhaço Roe Roe, que está circulando com o espetáculo ‘Muito Palhaço Para Pouco Circo’. Para Heinz, o importante é se divertir. “Não gosto muito de regras para o palhaço. Ele está dentro de cada um. é colocar para fora o espírito que quer se divertir com o outro”, explica.
A palhaça Lia Motta já teve experiência em circo, mas atualmente reúne mais apresentações em salas de teatro, com os espetáculos ‘Bem Te Vida’ e ‘Surpresa’, da sua própria companhia Palhaça Sem Lona. Assim também é Melissa Dornelles, que iniciou a vida na palhaçaria fazendo voluntariado em um hospital de Porto Alegre e recentemente esteve em cartaz com ‘Enfim Sós – Uma tragicomédia clownesca’, da Trupe Zona de Teatro, na sala álvaro Moreyra. Não obstante, as duas são graduadas em Artes Cênicas, apesar de confessarem que nunca aprenderam a exercer suas palhaças dentro da universidade.
Lia diz que a construção da sua palhaça, Marmota, é baseada na linguagem circense, na dramaturgia e nas referências de palhaços com quem fez oficinas. Melissa aproveitou a graduação para fazer uma especialização no curso de clown de Philippe Gaulier, o famoso mestre da palhaçaria, na França. “Ele incentivou em mim a capacidade de dar aulas e dirigir espetáculos”, lembra ela.
Nos palcos, a forma de apresentação é diferente dos circos. Não tem picadeiro e, pela maior proximidade com o público e pela luz de cena, a maquiagem é mais leve e os figurinos mais delicados e rebuscados. Pode-se dizer que tudo é menos exagerado, mas, nem por isso, deixam de existir as gags clássicas, nem o uso de máscaras, a triangulação e a quebra da quarta parede.
Já os palhaços Mauro Bruzza e Mariana Ferreira preferem atuar na rua. Todo domingo, no Brique da Redenção, eles chegam a apresentar seis sessões do espetáculo ‘Ao Divagar se vai Longe e de Bicicleta Mais Ainda…’, da própria companhia deles, 1Péde2. Mauro acredita que ser um palhaço de rua é um desafio maior, pois tem que fazer as pessoas entenderem que ali existe um espetáculo que deve ser valorizado através do dinheiro que é colocado no chapéu. “Na rua, pegamos as pessoas de surpresa. Temos que atraí-las, segurar a atenção delas e convencê-las a investir. A cada lugar que vamos, temos que nos adaptar. Por isso, nosso espetáculo está sempre em transformação”, diz ele.
Segundo os artistas, a pessoa na rua está totalmente vulnerável ao que pode acontecer. “Ao mesmo tempo em que deve ser ingênuo e palhaço, tem que agir como artista de rua e manter-se atento ao seu equipamento e ao que está acontecendo ao redor”, completa Mauro. Apesar de o desafio na rua ser maior, ele sente-se mais livre, com liberdade de escolher onde e quando quer apresentar e eleger seu público. Lembra também que o artista de rua acaba tornando-se uma figura conhecida da cidade e vive muito através da economia de trocas.
Genifer Gerhardt tem uma trajetória bem nômade e construiu sua palhaça, Palitolina, apresentando-se na rua, durante uma viagem que saiu da Bahia ao Rio Grande do Sul, passando por inúmeros povoados no interior do Brasil. “Gosto muito da rua, apesar de ser um lugar mais duro. é cru. Se a pessoa não está afim, ela vai embora, fala e não se importa”, diz ela.
Dos anos 90 para cá, o palhaço também chegou a um campo não muito comum para um artista: o hospital. O movimento iniciado pela ONG Doutores da Alegria ganhou o Brasil e, atualmente, milhares de pessoas exercem voluntariado como palhaços de hospitais, alegrando as pessoas que estão em situação de doença.
Melissa Dornelles iniciou sua carreira de palhaça dentro do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, aos 17 anos. Ela acredita numa palhaçaria espiritual, na palhaça enquanto cura. Após cinco anos nos ambulatórios, uniu a vivência ao conhecimento em Terapia Reichiana e Meditação, saberes do Sagrado Feminino, Xamanismo, medicinas da floresta e da própria ancestralidade na criação artística. “A minha busca pessoal corre paralela a palhaçaria”, diz ela.
Além do Circo Girassol, Rafael de Moura também atua nos hospitais, dando oficinas de formação para os voluntários de uma ONG daqui de Porto Alegre. Ele observa que muitas pessoas procuram o trabalho no hospital como uma forma de acessar os outros seres humanos e resgatar o sentimento de alegria, mesmo em situações de vulnerabilidade.
Palhaçaria feminina
Olhar ao redor e ver apenas o homem como referência de palhaços na história da palhaçaria fez Lia Motta questionar-se: “o que é engraçado para nós, mulheres?”. Dessa indagação surgiu uma busca por encontrar palhaças mulheres por aí e se construir juntas. Esse ano, ela produziu a 1ª Mostra Tua Graça Palhaça, um festival com apresentações de espetáculos e debates de palhaças do Sul, que aconteceu durante quatro finais de semana, em Porto Alegre.
Para Lia, o palhaço tem que fazer piada do discurso vigente e precisa questionar questões de gênero e machismo. Uma gag de dois homens brigando é engraçado para ilustrar o universo patriarcal, mas será que para duas mulheres faz sentido repetir essa gag? “Temos que fazer essas perguntas: isso faz sentido hoje?”, comenta.
“A palhaça tem a mesma função que o palhaço: fazer rir e transgredir. Mas a lógica das piadas tem que transitar em outro lugar, tem que vir de um ponto de vista da mulher”, completa Lia.
No curso Construindo seu Clown, as mulheres são mais da metade da turma e mostram muita dedicação e interesse na palhaçaria, mas encontram poucas referências históricas de mulheres palhaças. “A mulher existe na palhaçaria, mas não tem o mesmo destaque que o homem, não ganha evidência”, lamenta Lia. Para o ano que vem, a palhaça já está produzindo a 2ª edição da mostra e pretende fomentar a formação de mulheres palhaças.
Formação de palhaço
O palhaço ou a palhaça não nascem de uma formação, graduação ou curso técnico. Ele é resultado de conseguir acessar dentro de si emoções e sentimentos e transpassá-los, subvertendo o olhar comum, expondo pontos de dificuldade e encontrando conexões com o outro. Isso necessita de uma grande bagagem de vivências e entendimento sobre essas vivências. Dizem que quanto mais maduro, melhor é o palhaço. Por isso, Rafael de Moura costuma dizer que o palhaço é um artesão, que constrói seu ateliê dentro dele mesmo.
Mauro Bruzza conta que a vivência entre palhaços, em encontros e festivais, ajuda muito a se entender, trocar informações e conversas sobre esse universo. Para ele, os palhaços acabam aprendendo muito uns com os outros porque são generosos.
Lia Motta conta que da primeira oficina que fez de palhaça, em 2004, até aceitar-se como uma, levou quatro anos. “Foi muito difícil o primeiro contato. Eu saí odiando o palhaço. Não entendi nada”, ela ri. Mas, em 2008, quando participou do maior encontro de palhaços do Brasil, o Anjos do Picadeiro, ela sentiu que ser palhaça era seu caminho. “Eu vi que o palhaço não precisa ser bonzinho o tempo todo, porque ninguém é. O grande barato é navegar pelos sentimentos”, conta ela. A partir dali, começou a ir para as ruas interagir com as pessoas e buscar oficinas e referências que pudessem a ajudar nessa caminhada.
Os próprios palhaços daqui estão sempre produzindo oficinas e trazendo pessoas de fora para incentivar essa manutenção do ofício e passar adiante o saber. Esse ano, a enfermeira Rosana Fraga iniciou o curso Construindo seu Clown, ministrado por Rafael de Moura, na Cia de Arte. Ela conta que entrou na palhaçaria por acidente, buscando voluntariado, mas percebeu que faltava qualidade em alguns desses trabalhados e foi atrás de aperfeiçoamento com um palhaço “de ofício” mesmo.
Com o curso, Rosana percebeu que a palhaçaria acrescentou no nível de ser humano em sua vida. “Hoje eu vejo que a figura do palhaço pode ser muito mais transformadora do que podemos imaginar. Ele é um ser transgressor, mas, acima de tudo, interventor. Silenciosamente, consegue entrar em campos delicados como saúde, gênero, desigualdades. Vejo a arte da palhaçaria como auxiliar de um mundo melhor”, conta ela.
Atualmente, existem cerca de 30 alunos no curso Construindo seu Clown, estudando a linguagem do palhaço, produzindo intervenções e espetáculos e trazendo o debate do papel do palhaço na cidade. Assim como Rafael, Tuta, Melissa, Lia e Heinz ministram oficinas sobre palhaçaria em Porto Alegre, para atores e não atores. “Todo mundo têm um palhaço, é só conseguir colocar para fora de forma espontânea”, afirma Heinz.
Referências Bibliográficas:
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/17730/000723657.pdf
http://www.conteudoseducar.com.br/conteudos/arquivos/2581.pdf
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